O problema central dos caminhos de pesquisa que percorri para desembocar nas ideias aqui expostas, próprio do subcampo da antropologia chamado de antropologia política, é a definição de "política". [.] Em busca de uma definição liberta de pressupostos ocidentais de política que abrisse a possibilidade de compreensão e tradução, cheguei à definição de política como modo de operar coletivos ou conjuntos de princípios e procedimentos de juntar e separar grupos. Meus caminhos de pesquisa desembocaram em dois modos-moldes de relação, de constituição e dissolução de coletivos entre os povos nativos das Américas. Chamo-os "festa" e "guerra", ressaltando novamente que essas duas palavras têm aqui um sentido diferente do que podem evocar a leitoras e leitores lusófonos. O argumento central deste ensaio é o de que os povos indígenas deste continente, em seus milhares de variações no tempo e no espaço, concordam em conceber e praticar as relações entre diferentes seres do mundo - tanto as que qualificamos como sociais e políticas quanto as que associamos ao campo religioso ou às relações com "o meio" - em modo festa e em modo guerra, por assim dizer. [.]
A perspectiva pan-americana deste ensaio foi alimentada pelo crescimento exponencial de excelentes registros (etnografias) sobre povos nativos sul-americanos nas últimas décadas. Neste livro encontram-se tecidos conhecimentos e reflexões que recebi de mestras e mestres da antropologia, bem como da leitura de artigos e teses e de colegas e alunos com quem dialoguei ao longo dos anos, em escritos, aulas, seminários e palestras. Decerto há nele passagens que quase literalmente repetem o que escreveram ou disseram algumas dessas pessoas, ainda que não mencionadas em forma de citação; remeto às referências, no final, para as principais fontes de informação. Algumas passagens deste ensaio, longe de constituírem propriamente uma novidade, soarão muito familiares a etnólogos americanistas. [.] A dívida de gratidão para com os índios, pela acolhida e pelos ensinamentos, como disse Claude Lévi-Strauss ao encerrar sua "Aula inaugural" no Collège de France - e como recordou mais recentemente Bruce Albert -, pode ser apenas honrada, mas jamais quitada. As lições que este livro procura expor, tal como as compreendo, são deles, povos nativos das Américas, cultivadores da generosidade, sempre dispostos a explicar aos brancos seus modos próprios de bem viver. Nas aldeias onde estive, por períodos mais ou menos breves, fui recebida por anfitriões generosos, atenciosos, bem-humorados, praticantes de diversos e sempre elaborados modos de hospitalidade e etiqueta assentados em princípios compartilhados. Em todas elas ouvi cantores e contadores de histórias; em algumas participei de festas, em outras, só de preparativos. Em todas, testemunhei batalhas cotidianas na guerra movida por brancos contra seus modos de bem viver, e a valentia bem-humorada com que têm conseguido esquivar reiterados ataques.
- Beatriz Perrone-Moisés, na Introdução