Nos anos 1990, em meio à evolução dos bailes funks e à tomada dos morros cariocas pelo tráfico, uma mulher vai atrás de seus sonhos sem pedir licença
Aos quinze anos, Dora já se sente adulta o suficiente para desconsiderar o protocolo familiar. Independente, ela circula pelo Rio de Janeiro dos anos 1990 com uma liberdade que muitos desejam e poucos conseguem conquistar. Morando em uma enorme casa em Santa Teresa, na zona sul carioca, ela começa a se afastar da rotina que incluía férias de verão na casa de praia, feriados em família e finais de semana na casa de São Paulo.
É quando ela sobe o morro pela primeira vez, sem jamais imaginar o impacto que aquele mundo paralelo iria causar em sua vida. Naquela época, os morros cariocas se tornavam acessíveis para grande parte da juventude de classe média. No caso de Dora, essa história ganha outra perspectiva quando ela se envolve com Léo, então gerente do tráfico do morro próximo à sua casa.
Se Acaso Numa Curva é a estreia de Francisca Libertad na ficção e aborda, através de uma perspectiva feminina, a geração que viveu a adolescência nos anos 1990, época da tomada dos morros cariocas pelo tráfico e da evolução dos bailes funks no Rio de Janeiro - algo que acompanhamos até aqui contado em sua grande maioria por perspectivas masculinas.
Essa também é a jornada de autodescoberta e amadurecimento de uma heroína repleta de contradições. A rebeldia de Dora nasce do clássico entrave entre mãe e filha, que se joga na vida com coragem para se quebrar justamente por saber que vai sempre pode se juntar de novo, apostando se tornar algo ainda maior.
Entre a crueza da realidade dos morros e comunidades e a vida privilegiada da classe média do asfalto, Dora transita com o mesmo desprendimento e segurança entre as duas, não fazendo distinção entre universos tão diferentes. Ela enfrenta uma crise familiar, a desconfiança do irmão e dos amigos de colégio, vive as dúvidas do amor e os conflitos que permeiam suas escolhas. Inspirado na vivência da autora, Se Acaso Numa Curva acaba por refletir os ciclos de construção da própria identidade através das tantas travessias dessa mulher contemporânea que busca viver para além do que lhe foi ensinado ou permitido.
"Como Fiódor Dostoiévski, Francisca vai narrando a história, trazendo problemas e soluções tão naturais como é a vida de todos nós que temos problemas tão diferentes, mas não perdemos a esperança de sermos felizes para sempre. A construção das orações, o desenvolvimento dos parágrafos, os diálogos nos prendem de uma maneira que a leitura se torna instigante, prazerosa e cadenciada", afirma Paulo Lins, autor do clássico contemporâneo Cidade de Deus.
Essa é a história de uma mulher que teve coragem de ir atrás de seus sonhos sem pedir licença. A origem dessa rebeldia adolescente acaba se tornando o eixo que move Dora. Antes de qualquer expectativa social, seu compromisso é se encontrar. Enquanto a cidade observa, o morro acolhe filhos de todos os cantos, une afetos profundos ao caos carioca; uma prosa rítmica malemolente, quase musical, vai permeando a ladeira na vida de cada personagem que busca encontrar essa tal felicidade.